Artigo de Marisa Flórido originalmente publicado no Segundo Caderno, do jornal O Globo, em 8 de outubro de 2012.
Celebramos um culto vazio, o da própria exposição. Isso coloca as artes visuais em um lugar muito sensível e ambíguo
Em 1851, abria-se em Londres a primeira Exposição Universal (sob o
título “Grande exposição dos trabalhos da indústria de todas as
nações”), abrigada em um grande edifício de vidro e ferro, projeto de
John Paxton, jardineiro construtor de estufas. O Palácio de Cristal,
como ficou conhecido, geraria furor no público e contendas na crítica
especializada. Como é possível uma arquitetura sem sombras?
Interrogava-se então.
Giorgio Agamben especula se Marx não teria pensado no Palácio de
Cristal ao escrever “O fetichismo da mercadoria e seu segredo”. Mas o
fato é que o palácio não só colocava a mercadoria mas também seus
visitantes expostos em uma redoma. É sintomático que um dos primeiros
templos da mercadoria traga implícita a fase extrema do capitalismo: o
espetáculo. Guy Debord constataria que o capital chegaria a tal grau de
acumulação que se tornaria imagem, invadindo a vida social. “O
espetáculo não é o conjunto de imagens, mas uma relação social entre
pessoas, mediada por imagens.” Na sociedade do espetáculo, não apenas o
valor de troca separou-se do valor de uso, falsificando a produção
social, como encobriu e submeteu toda a existência. O que definia o
homem, como a política, a religião, a linguagem e a sexualidade, foi se
retirando para essa dimensão separada, virtual e em permanente
exposição. Basta pensarmos no julgamento do mensalão ao vivo em rede
nacional, a vida íntima exposta nos reality shows, a disputa pelas almas
(e por seus centavos) entre as igrejas em suas tele-evangelizações. As
potências da vida em comum foram se abrigando no Palácio de Cristal e
seu invólucro de vidro. Inclusive a arte e a cidade.
Nas novas geografias globais, as cidades competem para atrair os
fluxos de capital e imagem, concentrá-los e de algum modo
materializá-los em símbolos. Competem tanto pelo famoso museu e sua
arquitetura extraordinária como para sediar grandes eventos esportivos. O
Rio não permaneceria insensível a esse redesenho de forças. Nas últimas
décadas, empenharia-se em atrair um grande museu internacional (na área
portuária, onde ocorreu a ArtRio), concorreria para sediar grandes
eventos esportivos, como as Olimpíadas de 2016. A cidade do espetáculo,
tornando-se um grande evento, vive sua extrema exposição e insere-se na
era do turismo cultural, uma das indústrias que mais crescem no mundo.
Curioso é como arte e cidade vêm se cruzando nesse redesenho. Arte e
cultura vêm sendo usadas para alavancar reformas arquitetônicas e
urbanas em áreas degradadas: tanto com a implantação de grandes
equipamentos (museus e centros culturais) como com a ocupação de usos
afins (ateliês, galerias). A contrapartida perversa desse processo de
recuperação é a expulsão de seus moradores, principalmente dos mais
pobres, conhecida como gentrificação. Equilibrar a recuperação do
patrimônio histórico e urbano com a permanência da população tem sido um
dos desafios das políticas urbanas. (Ler Alucinações produtivas. Produção cultural na Zona Portuária? por Cristina Ribas)
A VITRINE DE PAXTON
Faço eco às preocupações de minha colega de coluna, Luisa Duarte, em sua pertinente
crítica, de termos o acesso à arte mediado principalmente pelo mercado e
sua feira, em que “a experiência para o leigo acaba sendo a de um
shopping”. A multidão frenética e ruidosa, a saturação do olhar na
confusão das obras, o encontro com pessoas que raramente vão a uma
exposição geravam mal-estar. Estávamos todos na vitrine de Paxton, em
exposição como as obras, atraídos pelo evento social, pela paisagem,
pela vista do mar, com que esta cidade tem laços afetivos e históricos.
Mas o fato é que 70 mil visitantes é um número considerável, e é
preciso refletir sobre esse fenômeno. Isso não vem acontecendo apenas na
ArtRio, o Rio teve três exposições no ano passado entre as dez mais
vistas no mundo, todas no CCBB. Podemos até entender o apelo lúdico da
mostra que ocupou o topo do ranking, “O mundo mágico de Escher”, mas
isso não se aplica a outra que também esteve entre as dez mais: a de
Laurie Anderson. Podemos deduzir suas causas de muitos fatores: a
gratuidade, a propaganda intensiva, a atração do espetáculo, o
investimento em educação dos centros culturais e das escolas públicas
cariocas etc.
Por outro lado, percebemos também outro processo em curso na cidade, o
de descentralização das ofertas culturais, a exemplo de iniciativas
como o Bela Maré, o Museu da Maré, as Bibliotecas Públicas de Manguinhos
e da Rocinha, os pontos de cultura, assim como os espaços independentes
de artistas e de coletivos.
O que talvez possamos vislumbrar nisso é uma demanda reprimida, que
se manifesta de diversas formas. O poder, hoje, não é mais fundado
apenas sobre o uso da violência e o controle da opinião, mas, sobretudo,
sobre a manipulação da emoção (com a qual o terrorismo joga) e sobre o
monopólio das visibilidades. A exposição em si tornou-se um valor.
Celebramos um culto vazio, o da própria exposição. Isso coloca as artes
visuais em um lugar muito sensível e ambíguo, tanto de servidão como de
resistência. Mas é exatamente por isso que talvez seja, pela arte, que
se possa refletir de modo consistente (ainda que problemático) o mundo
contemporâneo.
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