Cao Guimarães - Passatempo, Galeria Nara Roesler, São Paulo, SP - 23/07/2012 a 25/08/2012
O veio de água que avança sobre a pedra, empurrado por uma força que
apenas podemos adivinhar, e muda seu desenho; a água que flui e reflui
bruscamente, em jorro, por entre as pernas. O mar em perpétuo movimento,
guardando profundezas; as duas varas de pesca que, imóveis na praia,
sondam seus mistérios. As pipas que dançam no céu, num rito de
acasalamento; o balanço inercial dos brinquedos deixados a sós com o
vento.
Em Passatempo, um pequeno inventário das obsessões que se convertem
em poesia na obra de Cao Guimarães antecipa e celebra um encontro e um
nascimento. Percorrendo um caminho no qual a presença humana é apenas
presumida, como na série fotográfica Gambiarras, ou projeta-se (não sem
uma certa ironia) no namoro das pipas e das varas de pescar em
Paquerinhas, ou desaparece do mundo, como nos balanços vazios de Limbo,
chegamos a Otto, o trabalho mais recente do artista – que tem o nome de
seu filho e é descrito como “um filme de amor”.
A água – não por acaso, símbolo de nascimento e elemento que contém e
alimenta o embrião nas profundezas do útero – serve de norte a esta
curadoria. A água que se condensa no nevoeiro que apaga a cidade,
compondo uma paisagem, enfim, real; a água onde caem as linhas de pesca,
como chuva, da ponta das varas, que se lançam para o céu como antenas; a
água que se irradia em círculos concêntricos, constantes, perfeitos,
revelando, por contraste, a qualidade errante e errática do nosso
movimento.
Nos refluxos do meio líquido, na passagem do tempo, muda a vida. Em
Otto, o outro – antes entrevisto, desejado, ausente – está no centro da
cena. Silenciosa e precisa, gestada em tempo orgânico, a narrativa tem
como fio uma imagem de mulher. Ora se fixa em seu rosto, seu corpo, sua
voz, sua risada, descobrindo-a desde um lugar de intenso encantamento.
Ora a faz contracenar com as obsessões poéticas desse cinema – as coisas
que se movem sozinhas, insufladas de vida por algum vento; a barriga
que cresce e vira bolha, prestes a explodir num rebento.
“Instintivo e visceral como um gesto, intimista e confidente como um
diário filmado”, Otto faz com que o artista quebre o silêncio da
contemplação para descrever o encontro que desenha e inverte a espiral
do tempo sobre as águas de um rio, o prazer de conhecer alguém, a
“pesca”, no mar escuro dos genes, das características do novo ser. O
fruto nasce e o futuro germina. Para Cao Guimarães, o cinema é uma arte
que ainda está no berço.
Publicado no Canal Contemporâneo
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