Matéria de Audrey Furnaleto originalmente publicada no jornal O Globo em 16 de agosto de 2012.
O incêndio coincide com momento em que coleções particulares começam a ser expostas
RIO - Uma coleção particular, como define o curador Paulo Herkenhoff,
é uma espécie de “reunião de afetos ao longo de uma vida”. Outro
curador, Leonel Kaz, amigo de Jean Boghici, que viu seu apartamento com a
coleção ser tomado pelo fogo na última segunda-feira, completa a
definição com a lembrança de que “Jean era habitado pelos quadros que
tinha, e os quadros eram habitados por ele”. O incêndio do acervo, um
das mais importantes de arte moderna brasileira, coincide com o momento
em que coleções particulares — ou a “reunião de afetos” de um
colecionador — começa a chegar aos olhos do grande público.
O Museu de Arte do Rio (MAR) será o primeiro com espaço fixo
destinado a exibir diversas coleções privadas. Já na inauguração, em
setembro, duas exposições mostrarão as coleções particulares de Jean
Boghici, no terceiro andar (leia mais no texto ao lado), e de Sérgio
Fadel, no segundo andar. A ideia é que o museu siga recebendo acervos
privados. A coleção de Maria Lucia Veríssimo, por exemplo, deverá vir de
São Paulo ao Rio para ser exposta no MAR.
— Queremos manter a casa aberta a Boghici e aos colecionadores de
arte — afirma Paulo Herkenhoff, curador do museu. — O grande desafio do
Rio não é apenas ter as coleções à disposição dos museus, mas ter um
processo de institucionalização das obras. Voltei de Buenos Aires agora e
me impressionou seu Museu Nacional de Belas Artes, o mais sólido da
América Latina, formado por doações de quatro ou cinco gerações de
colecionadores.
O modelo do MAR difere daqueles do Museu de Arte Moderna (MAM) do
Rio, que abriga unicamente a coleção de Gilberto Chetaubriand, e do
Museu de Arte Contemporânea (MAC) de Niterói, que recebe a coleção de
João Satammini. No MAR, além das coleções privadas, forma-se acervo a
partir de doações de colecionadores, também na ânsia de levar ao público
suas obras.
Outros exemplos têm surgido no país. Em Ribeirão Preto, o empresário
João Figueiredo Ferraz criou um instituto que expões sua coleção de arte
contemporânea num espaço de 2.500 metros quadrados. No Rio, o casal
Monica e George Kornis, dono da maior coleção de gravuras do Brasil,
comprou uma casa para montar um instituto, em Jacarepaguá. Na cidade de
São Paulo, o economista Oswaldo Corrêa da Costa, temendo que seu “acervo
de 40 anos ficasse estéril, distante dos olhos do espectador”, também
criou um espaço para sua coleção, onde recebe visitas com agendamento.
O colecionador Ronaldo Cezar Coelho também planeja abrir um espaço
que não será apenas um “showroom” de suas obras, que incluem tesouros da
arte brasileira como “Vaso de Flores” (1931), de Guignard — adquirido
por ele num leilão da Christie’s em 2009 pelo preço recorde do artista,
US$ 759 mil. Ele, que compra as obras em nome de seu instituto, o São
Fernando, diz que a ideia é criar um centro de políticas públicas que
abrigará arte e será uma incubadora de projetos de educação, ecologia e
patrimônio histórico.
Coelho convidou o arquiteto chinês I.M. Pei, premiado com o Pritzker,
para visitar sua fazenda, um patrimônio de 1808 em Vassouras, no
interior do Rio, e conceber o desenho do espaço, mas o projeto foi
adiado: em pesquisas prévias, conta ele, constatou-se que o espaço
deveria ser nas capitais do Rio ou de São Paulo. De luto pela tragédia
com Boghici, Coelho afirma:
— O apoio ao mecenato no Brasil não existe. Estamos sozinhos nesse
trabalho, seja de repatriar obras brasileiras ou de preservá-las. Meu
sonho é exibir, tornar a coleção acessível ao público. Aliás, o maior
prazer de um colecionador é mostrar seus trabalhos.
Coelho lamenta que no caso do que chama de “repatriação de obras”
seja preciso pagar imposto de 35% sobre o valor do trabalho. Ele guarda
em Nova York um Frans Post pintado no Brasil e adquirido por ele nos
Estados Unidos porque, embora tenha apresentado explicações à Receita
Federal, não obteve abatimento no imposto.
Acervos viajam e são vistos
O Estatuto de Museus, por outro lado, estabelece, desde 2009, que
coleções de interesse público, seja em museus ou em propriedades
particulares, estão habilitadas a receber ajuda do governo.
— Pode-se até questionar a ajuda a um colecionador particular. Mas o
que está em primeiro lugar para um órgão de conservação, como o Ibram
(Instituto Brasileiro de Museus), é a preservação do bem cultural de
referência nacional. O fato de a obra ser particular ou pública é um
detalhe — afirma José do Nascimento Júnior, presidente do Ibram. — A
obra pode até ter seguro. Mas ninguém vai contratar Di Cavalcanti ou
Portinari para pintar de novo. O bem cultural se perde.
O galerista Ricardo Rêgo, dono da Lurixs, lembra que colecionadores,
como Boghici, Coelho ou ele próprio, preservam obras para que, em dado
momento, sejam de conhecimento público.
— A conservação de uma obra de arte é muito mais garantida nas mãos
de um colecionador do que numa instituição. As obras não ficam
trancafiadas, mas viajam para exposições e são vistas dentro do próprio
apartamento — diz Rêgo, referindo-se à sua coleção, numa cobertura da
Avenida Atlântica, que recebe visitas de críticos, curadores e
colecionadores internacionais.
O próprio “Samba” (1925), a joia de Di Cavalcanti perdida no incêndio
no apartamento de Boghici, é um quadro muito viajado, lembra Leonel
Kaz:
— Seu currículo é imenso. Recentemente, esteve na Bélgica. Foi um quadro feliz enquanto esteve vivo.
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